segunda-feira, outubro 31, 2005

E a dona Micaela...

...também a conhece?
«Não podemos continuar aqui a falar... está ali já a dona Micaela a cocar.
Era uma velha, que levantara a cortina de casa numa janela baixa e espreitava com os olhinhos reluzentes e gulosos, a face toda ressequida encostada sofregamente à vidraça. Separam-se então - e a velha desconsolada deixou cair a cortina.»
In.: O Crime do Padre Amaro

A propósito de retratos/caricaturas aqui ensaiadas; no seguimento de outras citações de Eça aqui transcritas; e deste filme.
Pela triste actualidade de palavras escritas em finais do séc. XIX.

terça-feira, outubro 25, 2005

O Zé...

...sempre igual a si próprio.
Já aqui falei dele. O filho do Ti'Rafael. Não sei se se lembram.
Uma manhã destas, telefonou-me. Queria almoçar comigo num restaurante que o tinha maravilhado. Tínhamos de pôr a conversa em dia, decidira. Acedi.
Ao cabo de menos de meio dia, duas meias buzinadelas anunciavam a chegada do Zé ao meu estaminé. Inchadíssimo, sai do topo de gama novinho em folha, acertando o cabelo luzidio, de tão empastado em gel.
Estava percebido o almoço.
Só para chatear, nem uma palavra lhe disse sobre a bomba. Já o café e digestivo eram servidos, e nada. Falámos dos temas habituais. Dos que é possível falar com o Zé, claro está. Quais? Está visto: gajas, dinheiro, noite; dinheiro, gajas da faculdade e noite; gajas da sua empresa, noite e dinheiro; e noite, gajas do prédio e dinheiro...
Desde os tempos da faculdade até hoje -em que é testa de ferros de um grupo africano com interesses em terras lusas- que assim é o Zé. Temas de conversa que vão para além destes, só se for para falar de carros, ou debitar uma meia dúzia mal parida de clichés sobre o estado da nação.
Num acesso misto de ingenuidade e esperança, ainda lhe perguntei:
- Então e a empresa? Como vão os negócios?
- Eh pá, isto está tudo fo**** mas a coisa vai andando.
- Mas consta-me que estás a exportar bem. Retorqui.
- Pá, não se está mal, mas o Governo é que dá cabo desta me*** toda.
- Pois... Respondo, fascinado com a lição de macroeconomia recebida.
O empregado do Carlton já trazia a conta do almoço. Melhor aviada que o dito, diga-se.
O Zé não perdeu tempo. Puxa da carteira Louis Vuitton, que põe em exposição em cima da mesa, e saca de um dos dos gold, enquanto o outro cai para o chão, num truque ensaiado, que escusava de performar para mim. Faz questão de pagar!
Assina o talão com a Cartier em ouro e fica a brincar com ela na mão, enquanto exibe o pulso que sustenta o Frank Müller.
- Bem, vamos andando? Já são horas! Desafiei, passava das quatro.
Num gesto de habitué, chama o garçon que lhe veste o blazer. O botão de punho fica preso na manga.
- Porra, pá. Dei uma fortuna por este fato da Zegna e a m**** destes botões dão-me cabo do forro. -desabafa- Compreio-os em Milão no Verão passado. São uns Versace. Porreiros, não são? Custaram-me uma fortuna. E este cinto da Mont Blanc? Foi a Cátia que m'o ofereceu, quando andava com ela.Lembras-te da gaja? Aquela das mamas grandes que andava em Economia...
- Não... sinceramente, não estou a ver. Respondi, com o ar de vamos-mas-é-embora-que-já-estou-farto.
Do restaurante para o elevador, do elevador para a garagem, da garagem para meu escritório, o Zé continuava o seu exercício preferido: pavonear-se. Da gravata nova Hermés, passando pelos sapatos não-sei-das-quantas, ao apartamento que comprou na Expo, até, finalmente, ao carro novo, o Zé não parou. Estava no seu melhor. Desde que o conheço que assim é. O que ele realmente faz? Nem ele sabe muito bem. Mas a coisa vai andando. Isso é que importa.
Finalmente, vejo a porta da empresa.
- Oh Fadista, quem é aquela boazona que supervisiona o teu call center? É competente? Pergunta com o ar que estão a adivinhar.
O Zé. Sempre igual a si próprio. E a tantos outros, afinal.
Não me diga? Também o conhece?

quarta-feira, outubro 12, 2005

A diferença...

...está na massa. Num destes dias, ainda num daqueles em que mais apetecia passear p'la rua, que ficar especado frente à caixinha mágica, decidi-me pela segunda. Na SICN, como o meu televisor já se habituou. Não me arrependi (desta vez).
Passava então uma entrevista requentada de Maria João Avilez a um senhor bem-posto, de ar sereno, fato e gravata sóbrios, mas de uma qualidade notória que adivinhava uma carteira folgada. Fiquei pregado ao ecrã com uma naturalidade de que apenas no final da entrevista me apercebi. Vi até ao fim. Não me esqueço da postura -lato sensu-. Admirou-me a clareza de ideias, coerência, ambição, frontalidade e franqueza. Ainda o humanismo do banqueiro a quem acusavam de falta de carisma.
Descomplexadamente, o colunável começa por admitir pertencer à Opus Dei, declara apoio à candidatura do Professor, e, sem se esgueirar, explica a estratégia de internacionalização da sua empresa, garantindo, com o mesmo ar imperturbável e sereno, de quem sabe do que fala, que ela será sempre controlada por capital português e apenas estará onde seja líder, ou haja um claro retorno de capital.
Perdoem-me, mas esta postura, para um homem e uma empresa só, não me parece comum nos tempos que correm, no país onde vivo, nas pessoas e empresas que conheço, nas caras que me habituei a ver na TV...
O homem que não arranjou, como outros, truques para exibir o seu relógio suíço de milhares de contos -que ofende e quem para ele trabalha-, que não levou a conversa para domínios mais confortáveis, que não se furtou a apresentar-se tal qual é, independentemente de desagradar a muitos, e que se via falar com a certeza que apenas assiste aos que realmente sabem do que falam, foi Paulo Teixeira Pinto.
Um perfil raro. Homem feito de outra massa.

Para quando destes perfis à frente do governo da coisa pública, do governo da cidade, do governo da empresa e do governo da nossa própria casa?
Não me consigo esquecer ainda de uma frase sua, possivelmente mote para um futuro post. Dizia qualquer coisa, como: "Em Portugal, usa-se mais o preconceito que o argumento".

sexta-feira, outubro 07, 2005

Gostei...

...da máxima. Gosto de escrever umas linhas. Gostava que o tempo me permitisse cumpri-la.

«Nulla die sine linea.»
Plinius